Congresso discute uso de cannabis medicinal para tratamento da dor

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Especialistas avaliam prรณs e contras do uso da substรขncia

O uso de cannabis medicinal para tratamento da dor em pacientes com doenรงas reumรกticas ainda gera muitas dรบvidas. Mรฉdicos reuniram-se no Congresso Brasileiro de Reumatologia, realizado em Goiรขnia no รบltimo fim de semana, para discutir os prรณs e contras no uso da substรขncia para fins medicinais.

“A cannabis รฉ uma planta utilizada pelo ser humano hรก aproximadamente 13 mil anos. ร‰ da flor que extraรญmos o canabidiol, que รฉ o principal produto com indicaรงรฃo medicinal”, explicou a mรฉdica reumatologista Selma da Costa Silva Merenlender, integrante da Comissรฃo de Mรญdias da Sociedade Brasileira de Reumatologia. “Quando falamos da cannabis medicinal, o principal produto a que nos referimos รฉ o canabidiol (CBD), que nรฃo traz dependรชncia. A tal dependรชncia estรก relacionada aos princรญpios psicoativos de outro componente da planta, o THC, que รฉ mais encontrado nas folhas e nos caules, que รฉ encontrado na maconha. ร‰ importante separar a maconha, que estรก presente na folha, do CBD, que รฉ a cannabis medicinal e que estรก na flor”, acrescentou.

O uso da cannabis tem sido sugerido por mรฉdicos e cientistas para o tratamento de algumas doenรงas, entre as quais a epilepsia refratรกria, que conta com estudos mais avanรงados e tem apontado para um bom resultado. “No Brasil, a primeira aprovaรงรฃo [do uso da substรขncia] foi justamente para o tratamento de epilepsia refratรกria em crianรงas, mas jรก existem evidรชncias cientรญficas – e que estรฃo em crescimento – da utilizaรงรฃo da cannabis medicinal para diversas indicaรงรตes neurolรณgicas, reumatolรณgicas, imunolรณgicas, controles de peso, ansiedade e depressรฃo”, disse Selma.

No caso da epilepsia refratรกria, o uso da substรขncia tem contribuรญdo para diminuir as crises convulsivas em crianรงas.

Entre as doenรงas reumatolรณgicas, a cannabis medicinal estรก sendo indicada para sรญndromes dolorosas crรดnicas como a fibromialgia e para o tratamento da dor relacionadas ร  artrite reumatoide, espondilite anquilosante e psorรญase. “O que a cannabis medicinal faz, alรฉm de retirar a dor, รฉ equilibrar o organismo, trazer o paciente para um estado anterior da doenรงa, ou seja, ele fica menos doente. Mas a doenรงa nรฃo รฉ curada. No caso da artrose, por exemplo, melhora a dor e a qualidade de vida do paciente.”

O assunto, no entanto, รฉ polรชmico. Embora seja cada vez mais comum pacientes que fazem uso de cannabis medicinal relatarem melhoras na qualidade de vida, como o deputado estadual de Sรฃo Paulo Eduardo Suplicy, que toma o medicamento para tratar os efeitos da doenรงa de Parkinson, hรก poucos estudos cientรญficos sobre os resultados e tambรฉm sobre os riscos. Isso ocorre principalmente no caso do tratamento da dor, disse a mรฉdica Alessandra de Sousa Braz, professora de reumatologia da Universidade Federal da Paraรญba e integrante da Comissรฃo de Dor, Fibromialgia e Outras Sรญndromes de Partes Moles. “Precisamos valorizar a cannabis medicinal, mas, quando valorizamos, precisamos saber que hรก prรณs e contras. Ninguรฉm prescreve nenhum fรกrmaco na reumatologia sem saber o que รฉ bom ou ruim.”

No Brasil, o uso da cannabis medicinal nรฃo รฉ livre: รฉ preciso que um mรฉdico faรงa a prescriรงรฃo. Atรฉ 2015, por exemplo, a venda de algum produto com canabidiol, substรขncia derivada da cannabis, era proibida no paรญs. Entรฃo, a Agรชncia Nacional de Vigilรขncia Sanitรกria (Anvisa) incluiu o canabidiol na lista de substรขncias controladas. Isso significa que empresas interessadas em produzir ou vender derivados da substรขncia precisam ter registro na Anvisa e que pacientes tรชm que apresentar receita mรฉdica para comprar o produto.

Atualmente existem apenas trรชs formas de acesso ao canabidiol: em farmรกcias, por meio de associaรงรตes ou por importaรงรฃo. Ainda nรฃo existe uma polรญtica de fornecimento gratuito de produtos ร  base de canabidiol por meio do Sistema รšnico da Saรบde (SUS). O que hรก sรฃo projetos em tramitaรงรฃo no Congresso Nacional buscando garantir o acesso de pacientes que precisam dessas terapias ao SUS.

Estudos incipientes

Mรฉdica em Joรฃo Pessoa, Alessandra costuma receber diversos pacientes que jรก usam a substรขncia. “Para dores neuropรกticas mais intensas, e que falharam para outros medicamentos, jรก hรก dados de literatura bem importante [falando sobre o uso da cannabis medicinal]. No caso da fibromialgia, que รฉ uma doenรงa multidimensional, o paciente nรฃo sรณ sente dor. Ele tem dificuldade de dormir, alteraรงรฃo do sono, alteraรงรฃo de humor, alteraรงรฃo da memรณria.” Os pacientes que tรชm fibromialgia e vem usando a substรขncia costumam relatar melhora na qualidade de vida, do humor e atรฉ da libido. No entanto, as evidรชncias de que a substรขncia age sobre a dor ainda sรฃo fracas. “Nรฃo sou contra [o uso da cannabis], mas quero saber o uso correto, ter uma indicaรงรฃo assertiva, e que a gente tambรฉm estude os efeitos adversos do medicamento.”

Segundo a mรฉdica, tambรฉm รฉ preciso esclarecer que o uso desse medicamento nรฃo รฉ livre para todas as pessoas. Em crianรงas e adolescentes, grรกvidas e idosos, a cannabis medicinal pode atรฉ apresentar riscos relacionados, por exemplo, ร  memรณria, problemas cardiovasculares e atรฉ associados ao leite materno. “Nรฃo sou contra a cannabis. Sou contra o uso inadvertido atรฉ para nรฃo queimar etapas”, afirmou.

Para Alessandra, faltam mais estudos sobre os efeitos da cannabis medicinal, principalmente os relacionados ao tratamento da dor e aos efeitos colaterais. “Como รฉ que eu vou estimular o uso de um medicamento que sรณ tem estudo por pouco perรญodo sem avaliar os riscos de longo prazo?”, questionou.

“Normalmente, quando se prescreve o remรฉdio, ele passa por quatro fases de estudo: um prรฉ-clรญnico, que รฉ antes de ser feito em ser humano para ver se รฉ seguro e eficaz; a fase clรญnica, jรก no ser humano, quando se faz inicialmente em uma pequena quantidade de pacientes para ver se รฉ seguro e, depois, em um grande nรบmero de pacientes para ver se รฉ eficaz e seguro. Depois entra na Fase 4, que รฉ o que a gente chama de comercializaรงรฃo. O que me preocupa รฉ que รฉ preciso uma normatizaรงรฃo: qual รฉ a dose, qual รฉ o miligrama e qual รฉ a posologia correta?”, disse a mรฉdica paraibana, em entrevista ร  Agรชncia Brasil.

Efeitos positivos

A adolescente Yasmim, de 13 anos, foi diagnosticada com lรบpus, artrite reumatoide e doenรงa de Crohn. Sua mรฃe, Silmara Marques Pereira de Souza, disse ร  Agรชncia Brasil que ela sofre continuamente de dores nas articulaรงรตes, enjoos e dores em todo o corpo hรก cerca de dois anos.

Hรก um mรชs, por indicaรงรฃo mรฉdica, Yasmim passou a usar a cannabis medicinal como complemento aos tratamentos. “Eu achei maravilhoso. O uso da cannabis jรก levou ร  diminuiรงรฃo do corticoide. Ela tomava 40 mg e agora estรก tomando 5 mg. Teve altos e baixos, mas, com a cannabis, o sono melhorou muito, as dores reduziram-se bastante. Ela continua sentindo dores,mas estรก tendo uma vida mais tranquila do que a de antes”, acrescentou Silmara.

A reumatologista Selma reforรงou que terapias com cannabis nรฃo sรฃo indicadas para todo tipo de doenรงa, mas podem ajudar no tratamento convencional de muitos problemas, entre os quais, a fibromilagia. Isso significa que a substรขncia pode ser um complemento ao tratamento, atuando em alguns dos sintomas associados ร  doenรงa. “Como qualquer medicaรงรฃo, ela [cannabis] tem suas indicaรงรตes e suas restriรงรตes.”

“No contexto da fibromialgia, melhorar a qualidade de vida, o padrรฃo de sono e o transtorno de humor รฉ tรฃo importante quanto o desfecho da dor. Esses pacientes, ร s vezes, trazem a dor para um palco secundรกrio quando todo o resto melhora”, reforรงou uma das mรฉdicas do Rio de Janeiro, que acompanhava a mesa de debate sobre o tema no congresso em Goiรขnia e que recomenda o uso da cannabis medicinal como terapia.

Custo elevado

Mais do que polรชmica, a cannabis medicinal ainda รฉ pouco acessรญvel no Brasil, e isso se deve principalmente ao custo elevado da substรขncia. “No tratamento [da Yasmim], que vale para trรชs meses, estรก em torno de R$ 400 atรฉ R$ 700”, informou Silmara, que torce para que a cannabis chegue ao SUS.

De acordo com Selma, o que eleva o preรงo do medicamento รฉ o fato de o cultivo ser proibido no paรญs. “O problema do acesso estรก relacionado ao preรงo. E o preรงo estรก relacionado ao fato de ser proibido o plantio da cannabis no Brasil seja para o uso recreativo, que รฉ proibido, seja para o uso medicinal. ร‰ preciso importar todo o รณleo e dilui-lo aqui no Brasil. E รฉ claro que isso vai ficar caro. Este รฉ um fator restritivo. Hoje, um tratamento bรกsico, com uma dose mรญnima de canabidiol, sai a R$ 200 ou R$ 300 por mรชs.”

Com isso, lembrou Alessandra, apenas pessoas de renda mais alta estรฃo tendo acesso a esse medicamento. Por isso, a mรฉdica afirmou que a cannabis precisa ser bem estudada e, entรฃo, regulamentada para melhorar o acesso de toda a populaรงรฃo ao medicamento.

*A repรณrter viajou a convite da Sociedade Brasileira de Reumatologia

Fonte : Agรชncia Brasil 

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